terça-feira, 17 de maio de 2016

La vita è bella (1997) - Roberto Benigni

La vita è bella (1997) - Roberto Benigni

A história é conhecida. Itália, Segunda Guerra Mundial. O comerciante judeu Guido Orefice, interpretado pelo genial Roberto Benigni é levado para um campo de concentração junto de seu tio e de seu filho. Sua esposa, que não era judia, requisita  junto aos oficiais alemães para também ser levada, a fim de permanecer próxima de sua amada família. Guido, com a clara intenção de manter a pureza do garoto diante dos horrores da guerra, encena uma brincadeira: consegue convencer o filho de que toda aquela situação não se passa de um jogo, uma espécie de gincana, com várias equipes envolvidas numa incessante e intensa disputa cujo prêmio é um tanque de guerra “de verdade”. Com isto, consegue preservar a ingenuidade e pureza do garoto diante dos horrores do nazismo, além de conseguir mantê-lo em frágil segurança.


Um traço interessante do filme: o personagem de Benigni reúne características de duas das mais marcantes personagens do universo circense. Os mágicos, que através de ilusões, constroem fantasias, modificando a realidade a seu bel prazer e entregando aos seus espectadores uma dimensão distinta, surpreendente e enigmática. E os palhaços, com a profundidade de sua dimensão tragicômica, operam rupturas no tecido do real, fazem, abruptamente, rir e chorar. A magia meiga e o ridículo encenado leva Guido a  conquistar o amor de Dora, uma professora compromissada com um ocupante de cargo público, e partidário das ideias fascistas, na pequena cidade onde vivem. As referências ao universo chapliniano são latentes.

Fica claro que Guido representa a bondade ingênua, a pureza romântica e o amor familiar.  Sua castidade e candura impedem que se sinta ameaçado pelo avanço das ideias e práticas anti-semitas na Itália, no fim dos anos 30. A perseguição aos judeus é iminente, porém o personagem recusa o pânico, mergulhado numa atmosfera idílica, romântica, onírica e utópica. Dora representa a força e a virtude da mulher. Primeiro, porque recusa o matrimônio arranjado com o autoritário burocrata fascista, para ficar com Guido, homem simples, terno e surpreendente. Em segundo lugar, porque praticamente abre mão de sua vida e de sua liberdade para entrar no comboio rumo à morte, com o objetivo de ficar próxima do filho e do marido. Giosuè, o menino prodígio, representa a inocência, a ingenuidade e a bondade pueril, mas também a inteligência, o engenho, o artifício, que parece ter herdado do pai.

As tentativas desesperadas de Guido para manter vivo o filho, acima de tudo, ultrapassa seu amor paternal. A mensagem do filme é clara: Guido quer que sua bondade pueril e inocente prevaleça. Por isso Giosuè não pode morrer. O garoto carrega a bondade intrínseca do pai e deve levá-la adiante, para as próximas gerações. Outra interpretação possível: os sobreviventes do holocausto somente se safaram através da fantasia, do encanto, da magia, da dissimulação e da alegria. Mas essa possibilidade só existe em relação ao outro, numa dinâmica que remete ao teatro, ou à vida social como espetáculo, encenação, representação. Se Guido estivesse sozinho, não suportaria. O que lhe deu forças para manter seu jogo foi a companhia do filho e a esperança de encontrar sua amada. Isso se confirma na cena mais sombria do filme. Guido, ao som da música trágica e romântica que conseguira executar para a esposa no gramofone, caminha perdido, carregando Giosuè adormecido, numa atmosfera escura e nebulosa. Depara-se, de repente, com uma montanha de corpos, vítimas funestas do holocausto concretizado. Guido olha horrorizado para os corpos. Não suporta vê-los, não suporta o terror, recusa-se a aceitar a realidade. Recua lentamente, em silêncio. Foge, de volta para o campo, para a realidade cruel, porém menos aterradora, já que ainda há esperança.  

À parte o roteiro, encantador, trágico e belo, ocorre uma cena que, infelizmente, inscreve A Vida é bela no hall da fama da indústria cultural norte-americana: a famosa cena do tanque. O blindado norte-americano chega no campo, algum tempo depois de sua desocupação, e se depara com Giosuè, sozinho, que procura não só pelo pai, mas também pelo prêmio, resultado de sua certa vitória no jogo imaginário-real. O tanque para diante do garoto. A escotilha se abre. Surge um soldado, belo, alto, moreno e corado (em contraposição à brancura pálida dos nazistas), em resumo, um norte-americano tradicional e idealizado. Algo como um Capitão América ou Superman. O soldado tira o capacete num gesto ritual e observa o entorno. Pergunta ao garoto se está tudo bem, se ele quer uma carona. A fantasia de Giosuè se efetiva.

Esse trecho traz um forte elemento ideológico. A bondade e pureza de Guido, mas também sua coragem e sua fé, são herdadas por Giosuè,  não por acaso “Josué”, o ajudante e sucessor de Moisés no Antigo Testamento, que se destaca por seus feitos, dentre os quais a conquista da terra prometida, e sobretudo por sua fé. Giosuè crê piamente na fantasia criada pelo pai. A fantasia transmuta-se em realidade, ainda que numa realidade falsa, imaginária, existente somente na cabeça do garoto.

Guido, no quartel, quando traduz o comandante nazista, não apenas dá as regras do jogo, numa referência (talvez) à Tábua dos Dez Mandamentos, mas trabalha e garante a fé de Giosuè em sua fantasia. O que leva o menino, mesmo depois de encontrar a mãe, a dar mostras de que mantem-se no jogo, no universo lúdico. É como se Benigni nos dissesse: é melhor manter-se na fantasia, no mundo ingênuo das crianças.  


Nessa chave interpretativa, a chegada das tropas americanas representa mais do que um erro histórico, pois se sabe que foram os soviéticos os primeiros a atingirem os campos de concentração no leste europeu: dão ao público a ideia de que a potência capitalista seria a responsável por salvar os valores tradicionais, como a família, a pureza, o amor, a democracia, as liberdades individuais. Os americanos aparecem como os detentores das “boas novas”, os restauradores da ordem e da liberdade. Em suma, os norte-americanos são apresentados como os mantenedores da ideologia liberal, cristã e tradicional, em contraponto a qualquer solução socialista, ateia e materialista. Por fim, A vida é bela acaba por assumir-se como obra que se enquadra no modo tradicional da ideologia, conforme descrita por Marx. Defende implicitamente o modelo capitalista tradicional de sociedade, embora o de um capitalismo humanista, não centrado no lucro puro e simples. Como forte apologia ao Grande Ditador de Chaplin, deve ser entendido como um filme político, ingênuo ao prescrever o amor e à fé na humanidade, astucioso por nos transmitir valores de modo pouco reflexivo.